31.1.16

"As Tourinhas", ou uma tarde de verão em Parada de Tibães (1922)

Rebuscando no baú encontrei esta peça, notável reconto de uma tarde – decerto memorável –, passada em família, no terreiro da Casa do Lugar de Parada de Tibães, e folgadamente glosada pelo olhar jornalístico de Gustavo de Matos Sequeira, um dos participantes.
Meu avô António, que a recolheu e vivenciou, remata a crónica, esmiuçando-lhe os detalhes para memória futura.


20 de Agosto de 1922

Tauromaquia

Realizou-se ontem a inauguração da suculenta Praça de Touros de Parada com uma animação e concorrência verdadeiramente assustadora. O dia estava daqueles que, acompanhados das devidas moscas e do devido calor, são eminentemente próprios para estas funções.
A tourada começou às cinco horas da tarde, mal a autoridade eclesiástica tomou o seu assento numa bem pintada cadeira junto da qual se encontravam os donos da Praça, pessoas de sua família e convidados.
O gado do afamado ganadeiro Palha & Pau deu toda a sorte que era de esperar, tendo os bois cumprido e saindo nobres e involuntários, tão nobres que eram todos de linhagem e tão involuntários que, para marrar, se tornava necessário que a isso os obrigassem.
Destacaram-se na lide o terceiro, quarto e sexto touro que ocasionaram um toureio “tout-à-fait” animado. As cortesias, atendendo a que os bandarilheiros eram todos corteses e iam em trajes de corte de camisa de dormir e de calças de linho, ofereceram um espectáculo deslumbrante. O famoso cavalo Vitorino, montado pelo cavaleiro Gustavonso Tionso, andou às arrecuas, caranguejando com toda a gentileza.
Depois das cortesias o supradito cavaleiro ofereceu à autoridade eclesiástica que presidia à corrida, um cheque de onze escudos esterlinos, produto sólido, líquido e gasoso deste certâmen taurino, que se achavam à ordem no Banco de Parada.
Tourearam a cavalo os gentis cavaleiros Gustavonso Tionso, António Redondo e Mário Neuímpar, montando o primeiro o cavalo “Vitorino” e os dois últimos o cavalo “Bambu”, que o primeiro também utilizou quando se inutilizou o primeiro cavalo, depois da colocação do primeiro e magistral ferro à gaiola que entusiasmou a assistência, que se pôs em bicos de pés e projectou sobre a Praça uma nuvem de cigarros e rebuçados.
Os cavaleiros António Redondo e Neuímpar espetaram magníficos ferros à meia-volta e à tira-gatos, sendo para notar o ferro espetado no quinto touro pelo cavaleiro Neuímpar ao desenrolar-se da farpa, depois de partida, uma bandeira ominosa.
O toureio a pé teve fases animadíssimas cumprindo pôr em relevo uma gaiola a câmbio e um quarteiro de Rapado, dois pares e dois ímpares de frente de Papo-Seco, e um câmbio e um sesgo de Trinca-Afonso no segundo touro.
Teimosito, que é uma decidida vocação para o toureio, bandarilhou o quarto e sexto touro, indo à cara com toda a limpeza e rematando as sortes com elegância própria de notável diestro. Na morte dos touros, excepção feita ao diestro Papo-Seco que atravessou de trás para diante o pescoço do quarto touro, foram realizadas várias avarias dignas de registo, tendo os respectivos carunchentos morrido com toda a rapidez e cordialidade.
O bandarilheiro Trinca-Afonso, depois de uma aparatosa colhida pelo quinto touro em que virou os pés por cima da cabeça, magoando o seu respeitável chapéu, pegou de cara o mesmo bicho o que lhe valeu uma extraordinária ovação e um dilúvio de rebuçados. Esta sorte foi oferecida ao Escrivão Afonso do Redondo.
Depois da lide do sexto touro, retiraram-se os convidados com a intenção de fazerem referências a esta corrida com “todos os vigores”, segundo a expressão usada pelos “Ecos do Minho”.
Numa das dependências da Praça achava-se amavelmente disposto um canjirão com vinho verde que obsequiosamente refrescou os lidadores com sucessivas libações. O cavalo “Vitorino”, depois do cavaleiro Tionso ter colocado o primeiro ferro, negou-se obstinadamente a continuar no toureio, demonstrando ser um cavalo de convicção. Fez de moço de curro e de estribeira, com toda a propriedade, o grande lavrador Luís Gomes Caseiro que também participou do vinho verde oferecido aos diestros. O piano fanfarra de D. Cândida de Tibães executou o “passe-calhe” Galhito, durante as cortesias. O quarto touro saltou às trincheiras duas vezes, tendo sido quase colhido o bandarilheiro El-Teimosito.
Os empresários da Praça de Parada contam para o ano realizar uma série de corridas, tendo já entrado em contrato para a adquirição de cavalos de combate e de gado bravo para esse efeito, constando que será contratado o célebre espada La Pedrita, tomando a alternativa o seu futuro filho caso já tenha nascido… para o toureio. O diestro Neuparth Júnior, “El-Crianço”, também tomará parte nessa corrida.

GUSTAVO DE MATOS SEQUEIRA
 
da esquerda para a direita: António Fernando de Sequeira Sottomayor, Gustavo de Matos Sequeira e Mário Neuparth;
ao centro: Maria Henriqueta, filha de Pedro Germano de Sequeira Sotomayor
Foto: espólio de António Fernando de Sequeira Sottomayor

Realizou-se a corrida no terreiro da Casa do Lugar em Parada, com a assistência do Reitor, o nosso bom amigo Padre António José de Araújo, e gente da casa. O tio Gustavo de Matos Sequeira (cavaleiro Gustavonso Tionso e bandarilheiro Rapado) e a tia Beatriz tinham ali ido para passar uns dias connosco.
Intervieram além daquele, como diestros, meu cunhado Mário Neuparth (cavaleiro Neuímpar e bandarilheiro Papo-Seco), minha sobrinha Maria Henriqueta (bandarilheiro El Teimosito) e eu (cavaleiro António Redondo e bandarilheiro Trinca-Afonso, nome que o tio Gustavo escolheu por eu estar então Delegado no Redondo e em guerra aberta com o Escrivão Manuel Luís Afonso).
Construímos a tourinha com uma cadeira de pau, velha, sacas de linhagem e palha, em cima de um carrinho de mão, que se fazia deslocar durante a lide, e fizeram-se as bandarilhas de cana ornamentadas a papel de seda de cores, uma delas com a bandeira azul e branca, a bandeira “ominosa” a que alude a notícia.
As senhoras fizeram rebuçados, e a Tia Beatriz tocou o “passe-calhe”, durante as cortesias, no piano que lá estava em casa e pertencia a D. Cândida Murta, que vivia em Tibães, piano que por empréstimo ia todos os anos no verão para a Casa do Lugar.
O cavalo “Vitorino” (nome que lhe foi posto pelo Tio Gustavo “em honra” do barbeiro de Parada) era um cavalito pequeno, propriedade do nosso caseiro Luís Gomes. O cavalo “Bambu” era uma simples cana cortada do canavial da quinta.

A parte final da notícia refere-se ao meu irmão Pedro (La Pedrita) que então não estava em Parada, ao seu filho futuro, minha sobrinha Maria Adelaide, que por coincidência nasceu em Lisboa no próprio dia da tourada, 19 de Agosto de 1922, às onze horas da noite, e ao filho futuro do meu cunhado Mário, a minha sobrinha Maria Adelaide, que nasceu em 21 de Outubro seguinte.

ANTÓNIO FERNANDO DE SEQUEIRA SOTTOMAYOR