Rebuscando no baú
encontrei esta peça, notável reconto de uma tarde – decerto memorável –, passada
em família, no terreiro da Casa do Lugar de Parada de Tibães, e folgadamente
glosada pelo olhar jornalístico de Gustavo de Matos Sequeira, um dos
participantes.
Meu
avô António, que a recolheu e vivenciou, remata a crónica, esmiuçando-lhe os
detalhes para memória futura.
20
de Agosto de 1922
Tauromaquia
Realizou-se ontem a
inauguração da suculenta Praça de Touros de Parada com uma animação e
concorrência verdadeiramente assustadora. O dia estava daqueles que,
acompanhados das devidas moscas e do devido calor, são eminentemente próprios
para estas funções.
A tourada começou às cinco
horas da tarde, mal a autoridade eclesiástica tomou o seu assento numa bem
pintada cadeira junto da qual se encontravam os donos da Praça, pessoas de sua
família e convidados.
O gado do afamado
ganadeiro Palha & Pau deu toda a sorte que era de esperar, tendo os bois
cumprido e saindo nobres e involuntários, tão nobres que eram todos de linhagem
e tão involuntários que, para marrar, se tornava necessário que a isso os
obrigassem.
Destacaram-se na lide o
terceiro, quarto e sexto touro que ocasionaram um toureio “tout-à-fait”
animado. As cortesias, atendendo a que os bandarilheiros eram todos corteses e
iam em trajes de corte de camisa de dormir e de calças de linho, ofereceram um
espectáculo deslumbrante. O famoso cavalo Vitorino, montado pelo cavaleiro
Gustavonso Tionso, andou às arrecuas, caranguejando com toda a gentileza.
Depois das cortesias o
supradito cavaleiro ofereceu à autoridade eclesiástica que presidia à corrida,
um cheque de onze escudos esterlinos, produto sólido, líquido e gasoso deste certâmen
taurino, que se achavam à ordem no Banco de Parada.
Tourearam a cavalo os
gentis cavaleiros Gustavonso Tionso, António Redondo e Mário Neuímpar, montando
o primeiro o cavalo “Vitorino” e os dois últimos o cavalo “Bambu”, que o
primeiro também utilizou quando se inutilizou o primeiro cavalo, depois da
colocação do primeiro e magistral ferro à gaiola que entusiasmou a assistência,
que se pôs em bicos de pés e projectou sobre a Praça uma nuvem de cigarros e
rebuçados.
Os cavaleiros António
Redondo e Neuímpar espetaram magníficos ferros à meia-volta e à tira-gatos,
sendo para notar o ferro espetado no quinto touro pelo cavaleiro Neuímpar ao
desenrolar-se da farpa, depois de partida, uma bandeira ominosa.
O toureio a pé teve fases
animadíssimas cumprindo pôr em relevo uma gaiola a câmbio e um quarteiro de
Rapado, dois pares e dois ímpares de frente de Papo-Seco, e um câmbio e um
sesgo de Trinca-Afonso no segundo touro.
Teimosito, que é uma
decidida vocação para o toureio, bandarilhou o quarto e sexto touro, indo à
cara com toda a limpeza e rematando as sortes com elegância própria de notável
diestro. Na morte dos touros, excepção feita ao diestro Papo-Seco que
atravessou de trás para diante o pescoço do quarto touro, foram realizadas
várias avarias dignas de registo, tendo os respectivos carunchentos morrido com
toda a rapidez e cordialidade.
O bandarilheiro Trinca-Afonso,
depois de uma aparatosa colhida pelo quinto touro em que virou os pés por cima
da cabeça, magoando o seu respeitável chapéu, pegou de cara o mesmo bicho o que
lhe valeu uma extraordinária ovação e um dilúvio de rebuçados. Esta sorte foi
oferecida ao Escrivão Afonso do Redondo.
Depois da lide do sexto
touro, retiraram-se os convidados com a intenção de fazerem referências a esta
corrida com “todos os vigores”, segundo a expressão usada pelos “Ecos do Minho”.
Numa das dependências da
Praça achava-se amavelmente disposto um canjirão com vinho verde que
obsequiosamente refrescou os lidadores com sucessivas libações. O cavalo “Vitorino”,
depois do cavaleiro Tionso ter colocado o primeiro ferro, negou-se
obstinadamente a continuar no toureio, demonstrando ser um cavalo de convicção.
Fez de moço de curro e de estribeira, com toda a propriedade, o grande lavrador
Luís Gomes Caseiro que também participou do vinho verde oferecido aos diestros.
O piano fanfarra de D. Cândida de Tibães executou o “passe-calhe” Galhito,
durante as cortesias. O quarto touro saltou às trincheiras duas vezes, tendo
sido quase colhido o bandarilheiro El-Teimosito.
Os empresários da Praça de
Parada contam para o ano realizar uma série de corridas, tendo já entrado em contrato
para a adquirição de cavalos de combate e de gado bravo para esse efeito,
constando que será contratado o célebre espada La Pedrita, tomando a
alternativa o seu futuro filho caso já tenha nascido… para o toureio. O diestro
Neuparth Júnior, “El-Crianço”, também tomará parte nessa corrida.
GUSTAVO DE MATOS SEQUEIRA
Realizou-se a corrida no
terreiro da Casa do Lugar em Parada, com a assistência do Reitor, o nosso bom
amigo Padre António José de Araújo, e gente da casa. O tio Gustavo de Matos
Sequeira (cavaleiro Gustavonso Tionso e bandarilheiro Rapado) e a tia Beatriz
tinham ali ido para passar uns dias connosco.
Intervieram além daquele,
como diestros, meu cunhado Mário Neuparth (cavaleiro Neuímpar e bandarilheiro
Papo-Seco), minha sobrinha Maria Henriqueta (bandarilheiro El Teimosito) e eu
(cavaleiro António Redondo e bandarilheiro Trinca-Afonso, nome que o tio
Gustavo escolheu por eu estar então Delegado no Redondo e em guerra aberta com
o Escrivão Manuel Luís Afonso).
Construímos a tourinha com
uma cadeira de pau, velha, sacas de linhagem e palha, em cima de um carrinho de
mão, que se fazia deslocar durante a lide, e fizeram-se as bandarilhas de cana
ornamentadas a papel de seda de cores, uma delas com a bandeira azul e branca,
a bandeira “ominosa” a que alude a notícia.
As senhoras fizeram
rebuçados, e a Tia Beatriz tocou o “passe-calhe”, durante as cortesias, no
piano que lá estava em casa e pertencia a D. Cândida Murta, que vivia em
Tibães, piano que por empréstimo ia todos os anos no verão para a Casa do
Lugar.
O cavalo “Vitorino” (nome
que lhe foi posto pelo Tio Gustavo “em honra” do barbeiro de Parada) era um
cavalito pequeno, propriedade do nosso caseiro Luís Gomes. O cavalo “Bambu” era
uma simples cana cortada do canavial da quinta.
A parte final da notícia
refere-se ao meu irmão Pedro (La Pedrita) que então não estava em Parada, ao
seu filho futuro, minha sobrinha Maria Adelaide, que por coincidência nasceu em
Lisboa no próprio dia da tourada, 19 de Agosto de 1922, às onze horas da noite,
e ao filho futuro do meu cunhado Mário, a minha sobrinha Maria Adelaide, que
nasceu em 21 de Outubro seguinte.
ANTÓNIO FERNANDO DE SEQUEIRA SOTTOMAYOR