21.2.15

"Multiplicar os peixes é poupá-los quando se reproduzem..." - O debute parlamentar de um filho de Estarreja

“Multiplicar os peixes é poupá-los quando se reproduzem…”[1]

Homem desembaraçado, com decisão acercou-se da tribuna a convite do presidente.
Olharam-no curiosos, os restantes cento e vinte e quatro deputados presentes no hemiciclo, preparando-se para escutar as suas primeiras palavras à Nação.
Baixote seria por condição física de génese, mas o momento elevava-o já a um patamar acima do português comum quando, nervoso mas confiante, se dirigia vez primeira à distinta Câmara dos Senhores Deputados.
Convicto monárquico como no futuro demonstrará, regozijou-se por entre os vinte sete absentistas seus pares, militar o odioso republicano Costa.
Pouco passava das quinze horas da tarde desse dia 8 de Junho de 1908 quando o brilho azulado do olhar se lhe redobrou e o coração de grandes causas disparou. Sob o bigode que a moda ditava, fez escutar a sua voz metálica, sem hesitação na forma:
- Senhor Presidente. – disse-o enquanto se virava para trás, num aceno de cabeça respeitoso a Fialho Gomes, continuando sem mais delongas:
- Ao fazer uso pela primeira vez da palavra no Parlamento, proponho-me apresentar algumas considerações acerca de um problema que julgo intimamente relacionado com a economia e altas conveniências do país: a pesca no rio Minho, problema cujo estudo implica deveras com o da pesca em geral, não podendo considera-lo isolado, mas tendo, por conseguinte, de me ocupar também da actual organização dos respectivos serviços.
Tribuna na Câmara de Sessões Parlamentares
Era então sobre assuntos de pesca que o distinto colega se dispunha a discorrer! Logo alguma assistência se desinteressou, outra se quedou à escuta por mera indolência, e a restante – esperamos que o grosso dos presentes – relevou a sua atenção, fosse por espontâneo interesse ou apenas curiosidade interessada!
Afinal o orador granjeara já algum mérito pelo trabalho desenvolvido no seio da muito respeitada Liga Naval Portuguesa. Diria ele, mais à frente no seu discurso, bem a propósito que o dito instituto desenvolvia então, benéfica missão de propaganda no norte do país, em favor das pescarias nacionais:
- À roda da missão estão hoje estabelecidas juntas locais em quase todos os concelhos dessa parte do país, constituídas por pessoas mais em evidência nas suas terras que, por seu turno, se fazem representar nas freguesias ribeirinhas por comissões defensoras das pescarias. – O Homem sabia bem do que falava, pois ele próprio fundara, há pouco mais de três anos, as juntas de Monção e de Vila do Conde, propugnando em conferências e actos similares, a pesca fluvial e o repovoamento dos rios locais. Ficara inclusive a presidir à primeira, por ser grande conhecedor dessa região, onde habitava a Quinta do Hospital na freguesia de Ceivães.[2]
Casa do Hospital, freguesia de Ceivães, concelho de Monção.
Solar minhoto do do século XVII, foi cabeça do morgadio dos Barões do Hospital. Situa-se a cerca de setecentos metros do rio Minho
   Apresentados os objectivos, logo hierarquizou as preocupações que o moviam: humanitárias à cabeça, sociais de permeio, económicas por cúmulo:
- É preciso e é justo que todas as questões que, interessando à nação, vão contender também com a vida e necessidades dos que têm menos recursos, sejam tratadas com toda a solicitude por parte dos poderes públicos. Inegavelmente, a classe piscatória é uma delas, Sr. Presidente. Entrega-se a uma tarefa ingente, difícil e perigosa, concorre dia a dia com risco e sacrifício da própria vida para as subsistências públicas, cria uma grande fonte de riqueza e, empregando tantos braços, auxilia o Estado até na sua árdua missão.
Já então como hoje, o recurso à estatística se tornava frequente e neste caso, o novel orador mostrava bom conhecimento da regra, passando a desfilar alguns números de rendimento geral das pescas, de forma a demonstrar à câmara, não só “a riqueza dos nossos fundos aquáticos”, como também a evidência da deficiente exploração da pesca em águas salobras.
Refira-se a título de curiosidade – por serem relativos – que atendendo aos números revelados, no século compreendido entre 1905 e 2005, os valores globais quase triplicaram, passando dos sessenta e três milhões de euros para cifras na casa dos cento e oitenta milhões de euros![3]
Logo avisou o deputado que as estatísticas eram ainda deficientes, mas urgia dotar quem por elas se responsabilizava, dos meios adequados para as fazer, anexando ao interesse desse correcto proceder, a melhor compreensão e análise da economia do sector em causa. E a quem se atribuía naquele tempo essa tarefa, bem assim como a fiscalização e supervisão? Nas questões do mar, rios limítrofes e cursos de água interiores afectos à jurisdição das autoridades marítimas, à Comissão Central das Pescarias do Ministério da Marinha; já a pesca fluvial, cabia à inoperante Inspecção dos Serviços Aquícolas, organismo do Conselho Superior de Agricultura no Ministério das Obras Públicas.
- Justo é, pois, e urgentíssimo – enfatizou – que a sério e a valer se reorganizem serviços que têm de satisfazer às necessidades de tão importantes riquezas públicas, exploradas por uma tão numerosa e destemida classe, cujos interesses ao Estado cumpre, portanto, atender o mais possível.
Nas pouco concorridas galerias, um pequeno mas robusto velho, concordava em silêncio, orgulhoso da sua “cria” que pusera no mundo há trinta e três anos, e testemunhava como agora a mesma se lançava às “feras” políticas do regímen. Elegante, demonstrativo… eficaz.
Lá em baixo, o único homem de pé, cuja protecção se resumia a uma dezena de finas folhas de papel impecavelmente redigidas, caligrafadas e organizadas, revelava num elogio, os alvos do seu combate próximo:
- À solicitude de S. Ex.as os Srs. Ministros da Marinha e Obras Públicas ofereço a primeira parte das considerações que vou fazer, tendo a certeza de que os ilustres estadistas com a sua louvável iniciativa e reconhecido zelo, de comum acordo, se vão ocupar do momentoso assunto.
Augusto de Castilho, Ministro da Marinha
Os independentes Castilho e Calvet de Magalhães eram assim os visados, ambos com pouco mais de quatro meses em funções![4]
Evocando o seu humilde modo de pensar, e deixando de lado rasgos de erudição a despropósito, logo o orador se iniciou nas devidas considerações, que mais não foram do que um resumo histórico das preocupações portuguesas acerca da preservação e conservação dos fundos aquáticos em território nacional. Lembrou tempos anteriores à Fundação, citou Cortes de quatrocentos e Leis de quinhentos, para enfim se centrar no zoólogo Barbosa du Bocage e na comissão a que presidiu com o duplo objectivo de regular o convénio ibérico, assinado em 1878 visando a reciprocidade da pesca entre Portugal e Espanha, e a proposição de medidas convenientes ao progresso da sua indústria.
- Foi esta, Sr. Presidente – informou, dirigindo de novo o olhar a Fialho Gomes – a comissão progenitora da actual Comissão Central de Pescarias.
No momento, aquele ciciava algumas palavras ao secretário Mota Veiga que o assessorava à mão direita. Interrompeu e meneou a cabeça, mostrando que assim mesmo, estava atento.
Confiante, o ilustre Conde – que esse era o título com que o falecido rei D. Carlos o distinguira, nem três anos se passavam[5] - prosseguiu o discurso pela análise que uma década mais tarde, a Sociedade de Geografia produziu acerca do estado das pescarias nacionais, relevando três conclusões que apontavam para a necessidade da criação de um organismo capaz de superintender, estudar, regulamentar e avaliar estatisticamente, a pesca e piscicultura marítimas e fluviais, capaz de promover a repovoação dos rios interiores e também capaz de organizar um eficaz policiamento das pescas.
Galerias na Câmara de Sessões Parlamentares
             Redigiram-se leis notáveis desde então – opinava o tribuno – mas a prática deixava ainda muito por fazer: careciam as disposições sobre o fomento piscícola artificial; escasseava a fiscalização e vigilância nas gigantescas circunscrições hidráulicas, inviabilizando o seu repovoamento por manifesto incumprimento dos regulamentos; ficaram esquecidos os idos decretos de 1893 e 1901 que prometiam escolas de pescadores nas populações da beira-mar e de piscicultura prática nas estações aquícolas.
- O Estado ficou em meio na sua obra. – criticou, não se esquivando à antevisão do porvir. – Concluído esse trabalho, verá o estado como a indústria se formará e como ela, na sua evolução futura, há de dispensar encargos que, no princípio, é inteiramente justo que o Governo chame a si, pois trata-se das riquezas públicas e a ele compete fomentá-las e desenvolvê-las.
Então sugeriu a centralização de todos aqueles serviços, magna reforma de que incumbiu os ditos ministros, justificando-a como o correcto modo de assegurar “a vida e o futuro próspero de uma indústria essencial, como a aquicultura, para a nossa alimentação pública”. Classificou tal acção como “obra verdadeiramente patriótica”, e enquanto se não fizesse solucionou o futuro próximo, através da divisão dos rios interiores em “zonas proporcionadas e capazes de ser vigiadas por um ou mais guardas consignados apenas a essa tarefa de vigilância”. A carestia ao Tesouro não seria exaustiva nem improdutiva, asseverou, demonstrando que o controlo do vandalismo viabilizaria as acções de repovoamento artificial dos rios. Bem informados e instruídos, os mesmos vigilantes forneceriam elementos essenciais para a melhoria substancial da ciência estatística, potencializando “o estudo económico desta importante riqueza pública”.
Finalmente, o distinto orador terminava as suas considerações gerais, lembrando que a Liga Naval a que pertencia, conseguira estimular a opinião pública para a importância do assunto de que se tratava, cativando a atenção das populações ribeirinhas, sem as quais, lembrou, “nunca o Estado de per si, poderia resolver”. Para mais, já então como hoje, o Governo criara organismos exigidos por lei, sem qualquer aplicação prática, tornando-se “inutilidades dispendiosas que se não pode admitir”. Era pois a altura ideal para enfrentar com seriedade a questão!
Entre muitos aplausos e algum burburinho menos concordante, o octogenário, das galerias sorria, como quem bem conhecia aquele mundo político que aliás, abandonara há oito anos, na legislatura de 1900. Agora usava da palavra o seu digno sucessor!
Na segunda parte do seu discurso, falaria do rio Minho porque, diga-se em abono da verdade, se para aquela distinta casa fora eleito, ao Círculo de Viana do Castelo o devia, se bem que o seu berço fosse no litoral mais a sul, terra que também lembrou na tribuna, pedindo com urgência ao Sr. Ministro da Marinha, a elaboração de novo regulamento local para as pescas, aproveitamento e conservação do seu “manancial aquático”. Nascido na vila de Estarreja, referia-se, evidentemente, à ria de Aveiro.
Aveiro, a "Veneza Portuguesa"
       E todo o hemiciclo pôde ouvir o gosto com que o bacharel Azevedo e Bourbon – que esse era o grau académico que obtivera com brilhantismo no curso de Direito em Coimbra, e esses apelidos que mais usava – recordou a terra que o viu nascer:
- Tive a ventura de nascer nessa formosíssima região, beneficiada na sua alimentação, na sua agricultura, na sua indústria e até nos seus encantos naturais pela ria, que, pelo capricho dos seus canais, não só fez de Aveiro a “Veneza Portuguesa”, mas também criou, entre a cidade e alguns concelhos vizinhos fáceis vias de comunicação, serpenteando por entre ilhas, dedicadas à cultura, a pastagens ou a marinhas de sal, constantemente sulcadas pelos característicos barcos regionais, tornando a paisagem de uma beleza inconfundível no nosso país – e nas galerias, comoveu-se o ancião, tantos anos autarca de Estarreja, associando-se ao elogio.
Prosseguiu então o discurso, após breve pausa convenientemente dedicada ao humedecimento de lábios e cordas vocais:
- A pesca no Rio Minho, Sr. Presidente, é inegavelmente a maior riqueza fluvial no nosso país – disse-o convictamente e sem assombro o deputado. Voltou a socorrer-se das cifras para o sustentar, e por elas ficamos hoje , cem anos depois, a conhecer que então, trabalhavam na pesca nos concelhos marginais ao Minho, desde a foz até Valença, 918 pessoas em 459 embarcações, obtendo-se um rendimento geral actualizado de cerca de trezentos e sessenta mil euros[6].
Informou ainda o Conde de Azevedo – que esse era o nome porque era conhecido entre os seus pares parlamentares – de que formas se fazia a pesca no dito rio: embarcações do estuário até Monção; pesqueiras e caneiros desde ali a São Gregório, na fronteira com a Galiza.
Aspecto das pesqueiras no rio Minho
     Não existindo números credíveis de qualquer organismo oficial, e conhecendo bem o terreno por ali ser residente, prontificou-se o orador a apresentar à câmara, estimativas aproximadas que ilustrassem a situação a montante da vila de Monção. Explicou-se e concluiu que seiscentas pessoas se dedicassem à manutenção das referidas artes de pesca (as quais avaliou em oitenta mil euros[7], estando operacionais cerca de três centenas), estimando um rendimento próximo dos cento e noventa mil euros[8]. Assim, trabalhariam no princípio do século XX no rio Minho, pouco mais de mil e quinhentas pessoas, produzindo uma riqueza aproximada de meio milhão de euros, e manejando aparelhagem e embarcações que orçavam duzentos e vinte e cinco mil euros. Notável e revelador da “inegável importância das riquezas aquáticas do Minho, o que torna esta pesca valioso auxílio para a vida difícil das populações ribeirinhas, sujeitas às crises de toda a ordem que afectam o nosso lavrador, empregando e dando recursos numa parte do ano a perto de duas mil pessoas, subsidiando a alimentação local do pobre e do rico e tornando possível uma exportação que é produtiva".
Nas palavras com que continuou a alocução, abordou exaustivamente o historial da regulamentação da pesca naquele curso de água e, se anteriormente evocara o seu humilde conhecimento das pescarias para não fazer “estendal de erudição”, agora mostrava-se bem mais à vontade, ou não tivesse sido a sua formação… em Leis!
Desde o primeiro convénio entre Portugal e Espanha, em 1878, passando por projectos de regulamentos, regulamentos e portarias, se chegara por fim a um texto regimental sobre a pesca, válido em toda a internacionalidade do rio Minho, publicado no nosso país a 17 de Maio de 1897, e dois dias mais tarde no país vizinho.
Mas… - enfatizou o orador – posto em execução, começaram logo a sentir-se as dificuldades de o fazer cumprir. Insurgiram-se pescadores, contra a malha das redes e a época de pesca decretadas, protestaram as edilidades e, por fim, até as juntas da Liga Naval Portuguesa! Os relatórios do porto de Caminha apelavam a modificações ao regulamento, no que eram prontamente seguidos pelas autoridades marítimas galegas; no entanto… sendo o rio internacional, só a comissão luso-espanhola, promotora do regulamento – por sorte então ainda não dissolvida – podia pronunciar-se acerca do que se reclamava! Alterou-se tão só o número sete, do artigo único do capítulo dois… de comum acordo entre os dois governos ibéricos!
Desde então, - continuou o Conde de Azevedo visando novamente o titular da pasta da Marinha – representações e relatórios têm sido remetidos para o Ministério dos Estrangeiros, onde esperam a iniciativa de negociações com o Governo Espanhol que neste momento venho solicitar ao ilustre titular dessa pasta.
Sr. Presidente – de novo enfrentou Fialho Gomes, passando logo a falar bem alto para toda a câmara, não evitando uma certa ironia na forma – reduz-se o começo da solução deste problema a uma coisa simples e singela: entabular negociações com a Espanha para ser reconstituída a citada comissão internacional, ou nomeada outra e convocada imediatamente para principiar os seus trabalhos.
Nas galerias, o decano regalava-se, deliciado pelo atrevimento. Já ele, se não exporia a tanto!
Embalado pelos incentivantes aplausos que se fizeram ouvir no hemiciclo parlamentar, Pedro de Azevedo e Bourbon reforçou ainda a pouca eficácia da referida lei de então, demonstrando que durante a década já decorrida desde a sua aplicação, o salmão praticamente desaparecera do rio Minho. Ora “parece que o reaparecimento e abundância desta espécie se deveria acentuar progressivamente cada ano”. Pois verificava-se o contrário – fez notar, logo levantando uma questão:
- Na verdade o salmão é em menor número ou, quando o regulamento permite a sua pesca, já ele se terá internado além da zona limítrofe do rio?
À pergunta que ficou no ar, logo seguiu o alerta das consciências. Era necessário, naquele caso específico, sabiamente escolhido para modelo de intenções do orador, estudar e conhecer os hábitos do salmão do Minho; quando sobe o rio e em que estado de desenvolvimento, quando e onde desova, se na parte internacional se a montante, na Galiza e, como ideal, referenciar com precisão esses locais.
Por isso, a primeira sugestão do orador prendeu-se com a existência, na futura comissão que ele esperava brevemente criada, de um vogal naturalista, para que as conclusões a extrair no final do trabalho incidissem, não apenas na fiscalização e polícia de pesca, mas igualmente no fomento e repovoamento artificial, não esquecendo o estudo e conservação dos afluentes de ambas as margens, aumentando assim a zona de acção para a desova dos peixes migradores.
A segunda sugestão, passava pela consideração normativa de toda a bacia hidrográfica do rio, uma vez que – conforme ressaltou – a zona internacional é a quarta parte do curso total do rio.
Finalmente, como última sugestão à futura comissão, explanou a ideia de que se fizessem as alterações necessárias ao regulamento de então, considerando as espécies sedentárias, o sável e a lampreia, e para o caso particular da pesca e repovoamento do salmão fosse elaborado um estatuto individualizado, pois “o saborosíssimo peixe tende a desaparecer do Minho, se não acudirmos solícitos até com o seu estudo científico para lhe surpreendermos o viver e os costumes que, como é sabido, se modificam com a latitude e, portanto, com a temperatura das águas que frequenta”.
Wenceslau de Lima, Ministro dos Estrangeiros
E então como hoje, não faltou o exemplo estrangeiro como meio de mobilização das vontades nacionais. O deputado não deixou de referir o caso do salmão do Reno, sujeito a uma convenção entre Alemanha, Suíça e Holanda, e do Meuse, entre a Bélgica, Holanda e França. “Estes tratados devem servir-nos de modelo e ensinamento para fazermos o que é preciso no rio Minho”.
Consciente do factor internacional da questão, o progressista Conde de Azevedo não deixou de concluir o seu primeiro discurso na Câmara dos Senhores Deputados da Nação, dirigindo-se ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, o regenerador Wenceslau de Lima, lembrando-lhe a receptividade garantida do governo de Madrid, sujeito a reclamações similares dos povos galegos da margem direita do rio, e a necessidade de honrar as palavras do rei D. Manuel II, no Discurso da Coroa, quando prometeu à classe piscatória, protecção para a sua indústria.
- Assim o fará o ilustre Ministro, estou certo disso, e portanto em nome dos povos interessados desde já agradeço a S. Exa. As suas prontas providências.
Tenho dito.
Aplaudido, o deputado retirou-se assumindo o seu lugar no hemiciclo. Na galeria, o ex-deputado e presidente da câmara de Estarreja, Francisco Barbosa, ergueu não sem algum custo os seus quase oitenta e um anos e, visivelmente satisfeito desceu as escadas, encaminhando-se aos “passos perdidos”[9] para rever velhos conhecidos. O testemunho estava passado.
Sala dos Passos Perdidos
       Desconheço o percurso que levou a questão das pescas no rio Minho. Sei que existiu um regulamento de 1967 e outro de 1981. Confesso que pouco ou nada estou informado tecnicamente sobre o assunto mas, por curiosidade, consultei o texto do regulamento actual[10], datado de Abril de 2008. Oito artigos regulam o exercício da pesca, três as artes de pesca e a sua utilização, outros tantos as épocas de pesca, defeso e dimensões a respeitar, quatro os lanços, nove as pesqueiras, oito o policiamento do rio e nove as sanções e coimas a aplicar.
Finalmente, através de cinco disposições finais, passa a conhecer-se a organização actual de todo este enredo: cem anos depois, caiu em saco roto a sugestão do ilustre orador ao pedir normativas para toda a extensão do rio; o regulamento actual continua aplicável apenas ao troço internacional do Minho. O organismo regulador sob a forma de comissão, é de carácter permanente e reúne pelo menos uma vez por ano, em maio, representantes de ambos os países no âmbito dos Negócios Estrangeiros, Defesa, Obras Públicas, Agricultura, Pescas e Ambiente. Note-se como ainda hoje, os principais objectos do regimento se situam no fim da lista de prioridades! Preside o lado português o capitão do porto de Caminha, e o lado espanhol o comandante naval do Minho.
Do Decreto de 1981[11], perdeu-se a obrigatoriedade da existência de dois técnicos em hidrobiologia, pelos quais, como vimos, lutou o ilustre estarrejense e que agora poderão participar “sempre que se considere conveniente”.
O objectivo, na íntegra, parece no entanto cumprir os desejos manifestados no discurso de 1908: “A Comissão Permanente terá por finalidade principal o estudo e a apresentação de propostas tendentes a melhorar as condições biopesqueiras do rio Minho”.
         Assim seja, para sossego do notável e já finado deputado.


Créditos fotográficos: Todas as imagens referentes ao parlamento, ministros, rio Minho e Aveiro foram retiradas da Internet; vista aérea da Casa do Hospital foi retirada do blog “Solar do Hospital”; Conde de Azevedo em 1906 e um seu postal autógrafo de 1908 com imagem da Casa do Hospital pertencem à colecção do autor.

*Este artigo foi publicado em "Terras de Antuã. Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja", Nº 4 - Ano 4 - 2010       


[1] “A melhor maneira de multiplicar os peixes é poupando-os na ocasião em que se reproduzem”. Citação atribuída ao filósofo francês do século XIX, Jules Michelet, e utilizada na alocução ao Parlamento aqui recordada, e que pode ser consultada na íntegra em http://debates.parlamento.pt/page.aspx?cid=mc.cd
[2] ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins (coord.), Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa, edições Zairos, 3ª edição, 2000, Volume II, pp. 362-363.
[3] VASCONCELOS, Pedro, O “real” valor do “dinheiro” – 850 anos de história de inflação em Portugal, Sacavém, Districultural, 1999, pp. 11, 24, 26, 63. O valor apresentado no discurso para o rendimento geral da pesca em 1905 foi de 4.333:904$240 réis. Em 2005, segundo os dados apresentados pelo INE, o rendimento empresarial líquido do ramo da pesca era cerca de 180.000.000€. A conversão apresentada para o valor em réis baseou-se na fórmula de cálculo explanada pelo Arq. Pedro Vasconcelos na obra mencionada.
[4] O primeiro governo após a aclamação de D. Manuel II foi constituído nos dias seguintes ao Regicídio, entrando em funções no dia 5 de Fevereiro de 1908. Era chefiado pelo independente Joaquim Ferreira do Amaral que acumulava as pastas da Presidência e do Reino, equilibrava-se entre os regeneradores Artur de Campos Henriques (Justiça) e Wenceslau de Lima (Estrangeiros), os progressistas Manuel Afonso Espregueira (Fazenda) e Sebastião de Sousa Telles (Guerra), e os independentes Augusto de Castilho (Marinha e Ultramar) e João Calvet de Magalhães (Obras Públicas).
[5] Decreto de 14 de Julho de 1905.
[6] 24:789$175 réis. Veja-se nota 3.
[7] 5:580$000 réis. Veja-se nota 3.
[8] 12:000$000 réis. Veja-se nota 3. Neste caso, o orador baseou-se em dados estatísticos recolhidos anos antes, em 1885-86, publicados por Baldaque e Silva na sua obra “Estado actual das pescas em Portugal”. Para o cálculo do valor actual, utilizou-se um factor de desvalorização da moeda referente não a 1905, mas a 1885.
[9] A “Sala dos Passos Perdidos”, adjacente à “Sala das Sessões Parlamentares”, é o grande centro de encontro entre deputados, membros do governo e jornalistas.
[10] O texto do Decreto-Lei nº 8/2008, de 9de Abril, pode consultar-se em: http://dre.pt/pdf1sdip/2008/04/07000/0214002152.pdf
[11] O texto completo do Decreto-Lei 316/81 de 26 de Novembro pode consultar-se em: http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/pesca/resource/Ficheiros/Regulam-Pesca-Rio-Minho.pdf

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